Permito-me reproduzir aqui, o que escreveu e publicou hoje no Jornal O Globo, o Sr. Joaquim Ferreira dos Santos. Matéria gostosa de ler. Tem sentido o que ele argumenta. Muito sentido!
Quando o caixa eletrônico questiona a sua existência
Meu prezado banqueiro, deixe eu me apresentar sem mais delongas e rapapés.
Eu sou um brasileiro como outro qualquer, estatura mediana, sete graus de miopia, ombros arqueados pelo peso do mundo, um zé joaquim que não vem ao caso esmiuçar. Nada de importância, nada que se me destaque o semblante, o olhar meio para baixo, as contas e as obrigações. Apenas mais um. Zero de significância social, rosca de pompa e neris de circunstância.
O que eu quero lhe dizer, meu banqueiro, é que acabei de chegar do seu banco, cheio de roletas antimetal, e o que me assucedeu calou fundo. Deve acontecer diariamente com milhares de outras pessoas, deve ser o jeito executivo de vocês irem direto ao assunto. Mas me foi a primeira vez e, se a moça da propaganda não esquece o sutiã, eu tenho o direito de lembrar a primeira vez em que alguém, sem sutileza, executivamente cru, falou: ‘Bicho, você está com o prazo de existência vencido’.
Sou, como estava dizendo, um senhor passado nos anos, portador da chamada idade provecta. Por tais contingências já somo uma caminhada que sei lá por que não desmaia, uma trajetória já quase tão mais comprida quanto a Restinga de Marambaia.
Por essa insistência em ficar de pé por tantos anos, embora a toda hora me estalem os ossos dos joelhos, eu acabei tendo direito a uma aposentadoria. À cata dela, e é isso que me faz lhe endereçar estas maltraçadas, todo mês vou ao seu banco retirar os caraminguás.Neste ponto nós dois nos encontramos, o zé joaquim qualquer e o grande doutor banqueiro, em mais um acerto daquela teoria de que todas as pessoas estão próximas por seis graus, seis passos, seis pessoas, sei lá.
Desculpe se tergiverso e tento falar bonito. Pois, então, é isso. Eu pego os caraminguás da aposentadoria no caixa eletrônico de seu banco. Raspo o quase nada de uma vez. Ponho num bolso bem escondido do paletó e, antes de me pôr à rua, investigo — eu leio jornal, vejo o “RJ TV” — se não está por perto algum esperto do golpe da saidinha. Ando em zigue-zague pela calçada, olhando para os lados e para trás. Percorro um quarteirão que tem cinco farmácias e faço a pesquisa de preço, de quanto vai o Motillium, o Pantoprazol etc. Em meia hora gasto a aposentadoria em comprimidos, graças aos quais estou de pé, respirando, enfiando o cartão no seu caixa e tentando retirar o que me cabe.
Digo “tentando” porque semana passada, no ritual do início do mês, enfiei o cartão na máquina, batuquei na lataria enquanto ela acordava, digitei a senha — e foi aí que a sua tela me alertou em letras garrafais: “Cartão bloqueado. Dirija-se ao caixa e dê prova de vida.”
Eu pensei que fosse alguma pegadinha do “Fantástico”. Uma câmera dentro do caixa eletrônico devia estar filmando a reação do aposentado diante daquele teste de existência proposto por uma lata de luz e teclado. Julguei estar ouvindo as gargalhadas sinistras de filmes com mortos-vivos. Pensei em esboçar um sorriso, sair bem no programa e desmentir com inteligência superior a suspeita da máquina — mas foi aí que eu pisquei, doutor banqueiro.
E se a máquina estiver certa?
E se ela tiver acesso a bancos clínicos, institutos médicos legais, fontes celestiais e, cérebro eletrônico, for mais bem informada do que eu?
E se o cartão de vida já estiver definitivamente bloqueado e você, como na piada do adultério, foi o último a saber?
E se o aviso fosse mais um desses serviços que os bancos oferecem sem lhes ser pedido e pelos quais cobram centavos, que se somam aos centavos de outros milhões de aposentados, e no balanço de fim de ano dão lucros de bilhões de reais?
Bancos são funcionais, raciocinam matemáticas e não questões filosóficas como a que a máquina me propunha. De índole prática, ela me deixava sem o dinheiro, o que talvez já confirmasse a notícia. No novo plano espiritual a que estava sendo anunciado, eu não precisaria mais dessas coisas materiais.
Fiquei diante da máquina pensando que provas de vida eu daria — chutar-lhe-ia as canelas, colaria um chiclete na tecla “enter” — mas, cabisbaixo, como se me declarasse culpado, não encontrei boas saídas para passar no teste e ter o cartão existencial desbloqueado.
Que homem se apresentaria, hoje, diante de uma banca formada por caixas de banco, psicanalistas, ou qualquer tribunal de felicidade, para ser submetido com profundidade a um teste de vida? Qualquer tribunal que perguntasse em primeiro lugar qual o tempo que cada um tem disponível para se divertir, zerar o QI, buscar o prazer do jeito que lhe aprouver, seja escrevendo estas palavras difíceis, jogando gamão, fazendo sexo ou simplesmente indo ali molhar a ponta do dedo no mar de Ipanema só para dizer à mulher que o acompanha, “eu tô maluco ou esse aquecimento do planeta está deixando a água cada vez mais fria” — e os dois, de bobeira, cairiam na gargalhada.
Eu não sei dos poderes de um computador dentro de um caixa eletrônico, meu caro banqueiro, mas fiquei com a impressão de ele ter me registrado em frente ao terminal, digitando a senha ao mesmo tempo em que procurava mensagens na internet do celular e fazia sinal para o táxi, estacionado na calçada, continuar me esperando. O caixa eletrônico deve ter percebido o tumulto de minhas intenções, a correria sem sentido, os trabalhos sempre atrasados, os amores sempre maltratados, e por alguns centavos disparou o alerta zombeteiro duvidando que, com uma rotina dessas, eu ainda me considerasse vivo. (Na próxima semana, no guichê da agência, a bancária de óculos e sorriso irônico faz as questões do teste de vida.)
Um grande abraço a todos.