A invenção restritiva do ‘lugar de
fala’ é apenas uma bobagem universitária, que só pode servir para restringir
nossa liberdade de expressão.
Quando minha filha me mostrou
revoltada o vídeo no celular, achei que podia ser uma brincadeira de mau gosto,
um desses programas de youtubers que gostam de agredir o politicamente correto.
Um Porta dos Fundos infeliz. Mas depois entendi que se tratava mesmo de um post
de alguém que tinha o hábito de frequentar a internet com esse tipo de
intervenção imbecil, em relação a qualquer assunto que fosse capaz de ferir o
próximo. Um praticante gratuito de um certo exibicionismo sadomasoquista.
No vídeo, uma moça feia, meio
gordinha, com cabelos cortados em franjas de um jeito bem antigo, lábios
viperinos que tentavam impedir os dentes de pularem fora e um sorriso
sequestrado pelo pescoço grosso, dizia, através de palavras mal mastigadas,
coisas horríveis sobre Titi, de 4 anos, filha adotiva do casal Giovanna Ewbank
e Bruno Gagliasso, astros de nossa televisão. Titi, vi depois seu retrato na
imprensa, é uma criança graciosa, que os pais adotivos conheceram num país
africano. A menina é, portanto, negra, a razão dos desvarios da moça na
internet.
A moça em questão se chama Dayane
Alcântara Couto de Andrade, mas se manifesta nas redes sociais com o pseudônimo
de Day McCarthy, como se fosse uma cidadã americana que mora no Canadá. Aos
jornalistas que recebeu com entusiasmo, miss McCarthy afirmou que faz sempre
esse tipo de publicação nas redes, para se vingar de quando, desde sua tenra
infância, era vítima de bullying na escola, de colegas que a chamavam de pobre,
gorda e feia. Dayane disse no jornal que já nasceu “com pensamento racista”.
“As pessoas me chamavam de macaca”, disse ela, “porque diziam que eu era preta
e tinha o nariz de Michael Jackson”.
Miss McCarthy está, em primeiro
lugar, se “limpando” da cor que atribuíram a ela na infância. Quem chama uma
menininha negra de macaca, é porque quer ter e dar a certeza de que não
compartilha com ela a cor que despreza e lhe envergonha. É como se estivesse
dizendo a seus colegas de escola, agora crescidos e usuários da internet, que
não é negra como eles pensavam. Tanto que está tomando a iniciativa de humilhar
e tratar de macaca uma negra de verdade. E nós ficamos de queixo caído, sem
entender de que fundo de cultura preconceituosa miss McCarthy tirou esse ódio
racial.
Ao mesmo tempo em que procurava “se
limpar” junto aos internautas que identificou a seus colegas de escola, Dayane
urdia também uma vingança contra o sucesso de Giovanna e Bruno. Um sucesso com
que provavelmente sempre sonhou para ela mesma e nunca conseguiu obter. Um
casal jovem, louro, bonito, famoso e rico como aquele deve ter despertado nela
um desejo insuportável, o retorno de um sonho recorrente que a levou a postar
na internet as besteiras que posta com constância e dedicação. A participação
de miss McCarthy nas redes sociais não pode ter como objetivo único senão a
conquista do universo, do amor de todos por seu talento e beleza. Como não terá
nada disso nunca, só lhe resta tentar destruir quem o tem.
O sadomasoquismo racista que usa a
humilhação dos negros como instrumento de afirmação tem, particularmente no
Brasil, força semelhante ao ódio social provocado pela frustração do projeto de
ascensão social. Embora sejam quase 60% de nossa população, os afro-brasileiros
ainda são tratados como “minoria”. O papel sociocultural dado ao negro no
Brasil de hoje, depois de tanto progresso democrático no país, é certamente
menos protagonista, inferior até ao que já foi recentemente. E, por mais
terrível que isso seja, parece contaminar a indignação justa de pensadores e
artistas de origem afro-brasileira.
Enquanto Day McCarthy exibe seu
racismo ignóbil na internet, alguns militantes negros condenam, por exemplo, o
filme “Vazante”, de Daniela Thomas, porque se passa na época da escravidão, sem
que os escravos sejam seus protagonistas; ou a exposição “Pourquoi pas?”, em
que a artista negra Alexandra Loras recria cor e traços negróides em retratos
de celebridades brancas. Daniela e Alexandra não têm o direito de fazer seus
filmes e quadros porque são brancas ou negras; mas porque são artistas e, antes
de tudo, seres humanos que têm o direito de se expressar como bem entender, se
não forem injustamente agressivas, nem humilhem o objeto de suas obras. A
invenção restritiva do “lugar de fala” é apenas uma bobagem universitária, que
só pode servir para restringir nossa liberdade de expressão. Todos têm o
direito de falar sobre tudo.
É preciso citar sempre o grande
Joaquim Nabuco. Ele escreveu que a escravidão tinha sido um mal tão profundo,
que o Brasil, mesmo depois da Abolição, ainda ia levar muito tempo para se
livrar do que ela nos impôs, de sua sombra. Não está dando outra.
(Fonte: OGLOBO.GLOBO.COM - Cacá
Diegues - Sergyo Vitro via Twitter)
Um
grande abraço a todos.
Ari
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