FRAIBURGO

16 setembro 2012

Depoimento "Zé da Ilha"


Depoimento prestado à polícia, por “Zé da Ilha”, tremendo malandro,  na década de 50:

“Seu doutor, o patuá é o seguinte:

Depois de um gelo da coitadinha resolvi esquinar e caçar uma outra cabrocha quepreparasse a marmita e amarrotasse o meu linho no sabão.
Quando bordejava pelas viasabasteci a caveira e troquei por centavos um embrulhador.

Quando então vi as novas do embrulhador, plantado com um poste bem na quebrada da rua, veio uma pára-quedas se abrindoeu dei a dicaela boloueu fiz a pistacoleisolei, ela aí bronqueou, eu chutei, bronqueou mas foi na despista, porque, muito vivaldina, tinha se adernado e visto que o cargueiro estava lhe comboiando.

Morando na jogada, o Zezinho aqui ficou ao largo e viu quando o cargueiro jogou a amarração dando a maior sugesta na recortada. Manobrei e procurei engrupir o pagante, mas, sem esperar, recebi um cataplum no pé do ouvido.

Aí dei-lhe um bico com o pisante na altura da dobradiça, uma muqueada nos mordedores e taquei-lhe os dois pés na caixa de mudança pondo-o por terra.

Ele se coçou, sacou a máquina e queimou duas espoletas.

Papai, muito esperto, virou pulga e fez a dunquerque, pois o vermelho não combina com a cor do meu linho.
Durante o boogi, uns e outros me disseram que o sueco era tira e que iria me fechar o paletó.

Não tenho vocação pra presunto e corri.

Peguei uma borracha grande e saltei no fim do carretel, bem no vazio da Lapa, precisamente às 15 para a cor-da-rosa.
Como desde a matina não tinha engolido a gordura, o roque do meu pandeiro estava sugerindo sarro.

Entrei no china-pau e pedi um boi a mossoró com confete de casamento e uma barriguda bem morta.

Engoli a gororoba e como o meu era nenhumpedi ao caixa pra botar na pendura que depois eu iria esquentar aquela fria.

Ia pirar quando o sueco apareceu. Dizendo que eu era produto do Mangue, foi direto ao médico-legal para me esculachar.

Eu sou preto mas não sou Gato Félix, me queimei e puxei a solingea.
Fiz uma avenida na epiderme do moçoEle virou logo América.

Aproveitei a confusa para me pirar, mas um dedo-duro me apontou aos xifópagos e por isto estou aqui.”


Significados:
patuá
forma giriática para substituir “o negócio”, “a questão”, “o problema”.
gelo
desprezo
esquinar
ficar parado em esquinas, à espera de algo
cabrocha
mulher
que preparasse a marmita e amarrotasse o meu linho no sabão
que cozinhasse para mim e lavasse a minha roupa
bordejava pelas vias
perambulava pelas ruas
abasteci a caveira
tomei uma bebida – uma cachaça
troquei por centavos um embrulhador
comprei um jornal
na quebrada da rua
na esquina
veio uma pára-quedas se abrindo
veio uma mulher demonstrando interesse pelo malandro
eu dei a dica
o malandro dirigiu um gracejo à mulher
ela bolou
a mulher foi receptiva à lisonja do malandro
eu fiz a pista
acompanhei-a
colei
aproximei-me, caminhando ao lado da mulher
solei
conversei com a mulher
bronqueou
demonstrou com palavras iradas, o seu desagrado
vivaldina
viva, esperta, inteligente
o cargueiro estava lhe comboiando
o namorado a estava acompanhando
morando na jogada
compreendendo a situação
o Zezinho aqui
forma do malandro referir-se a si mesmo
o cargueiro jogou a amarração
o namorado se aproximou dela
um cataplum no pé do ouvido
um soco ou bofetada na orelha
dei-lhe um bico com o pisante na altura da dobradiça
dei-lhe um pontapé no joelho
uma muqueada nos mordedores
forma de muque – um soco nos dentes
taquei-lhe os dois pés na caixa de mudança
saltei-lhe com os dois pés sobre o peito
ele se coçou, sacou a máquina e queimou duas espoletas
sacou o revólver e fez dois disparos
papai
(outra forma do malandro referir-se a si mesmo)
virou pulga
deu um salto
fez a dunquerque
evadiu-se, fugiu (alusão à famosa retirada de dunquerque, na Segunda Guerra Mundial)

vermelho não combina com a cor do meu linho
referia-se ao vermelho do sangue
tira
policial, detetive, investigador.
fechar o paletó
matar
não tenho vocação pra presunto
referia-se ao seu apego à vida
borracha grande
ônibus
no fim do carretel
no fim da linha, no ponto final
bem no vazio da lapa
no Largo da Lapa
às 15 para a cor de rosa
às 17 horas e 45 minutos
matina
manhã

(observe-se a influência do elemento imigrante através desse vocábulo italiano)
o roque do meu pandeiro
o ruído do meu estômago
china-pau
“china” (pequenos restaurantes chineses que serviam pratos a preços populares, na época, muito comuns no Rio de Janeiro)

boi a mossoró com confete de casamento
bife a cavalo com arroz
e uma barriguda bem morta
cerveja bem gelada
como o meu era nenhum
como não tinha dinheiro…
pedi ao caixa pra botar na pendura que depois eu iria esquentar aquela fria
pedi ao caixa um crédito, dizendo-lhe que pagaria a despesa mais tarde.
dizendo que eu era produto do mangue
o Mangue é um dos prostíbulos do Rio de Janeiro (curioso notar o eufemismo desta construção)

me queimei e puxei a solingea
irritei-me e saquei a navalha (a marca do instrumento Solingen passou a sinônimo de navalha)

fiz uma avenida na epiderme do moço
fiz um talho na pele…
ele virou logo américa
ficou vermelho como sangue (América Futebol Clube, cujo uniforme se compõe de camisas vermelhas)

dedo-duro
delator
xifópagos
policiais do Rio de Janeiro que sempre andam em duplas também chamados Cosme e Damião)

Fonte: Jânio Quadros - Ex-Presidente do Brasil  (São Paulo, editora Formar, 1966, 6 volumes). Colaboração de Loro Martins Rodrigues.


Um bom domingo e um grande abraço a todos.

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